Amadora Liberal

Shakespeare e o Liberalismo

Numa das suas mais cĂ©lebres palestras, o cĂ©lebre crĂ­tico literĂĄrio do sĂ©culo XX, Harold Bloom, afirmou que se algum dia viermos a colonizar Marte, serĂĄ uma questĂŁo de tempo atĂ© que haja representaçÔes marcianas das peças de Shakespeare. Um indicador de que assim serĂĄ Ă© o jantar entre humanos e Klingons que terĂĄ lugar no ano de 2293 – de acordo com a autoridade do filme Star Trek: Undiscovered Country (este subtĂ­tulo em si uma frase extraĂ­da de Hamlet) –, no qual o Chanceler Gorkon diz a Spock que “Ainda nĂŁo experimentou Shakespeare atĂ© o ter lido no original Klingon.” Conforme detalhado no aviso legal deste Hamlet original retroactivamente publicado no ano 2000 pelo Klingon Shakespeare Restoration Project, Shakespeare foi na verdade um Klingon chamado Wil’yam Sheq’spir, e Hamlet um guerreiro-poeta e prĂ­ncipe nĂŁo da Dinamarca, mas de Qo’noS, planeta-natal dessa espĂ©cie. A inspiração para esta obra satĂ­rica veio da tentativa real dos Nazis de demonstrarem que Shakespeare havia de facto nascido nĂŁo na Inglaterra, mas na Alemanha.

A intimidade que a obra de Shakespeare aparenta ter com todas as culturas, que leva autocratas (reais e imaginårios) a quererem reclamå-lo para a suas próprias narrativas históricas, é talvez o melhor ponto de partida para que compreendamos por que motivo o alargar dos séculos que nos separam deste autor se tem paradoxalmente repercutido num estreitar da relação pessoal que cada indivíduo tem com as personagens que engendrou.

Esta afirmação nĂŁo Ă© Ăłbvia para quem nunca teve contacto com a obra shakespeariana, ou que apenas a conhece superficialmente. As 38 peças que nos deixou sĂŁo mais facilmente vistas como um artefacto do Renascimento inglĂȘs, obscuras na linguagem e distantes dos temas da actualidade, de interesse apenas para estudiosos da Ă©poca ou de literatura, cujos reis, prĂ­ncipes, fadas, fantasmas, generais romanos, prostitutas, bobos, bruxas e bĂȘbados, pouco terĂŁo a ensinar a quem leva a sĂ©rio os problemas reais que enfrentamos quatro sĂ©culos depois no mundo da interconectividade global, ameaça nuclear e inteligĂȘncia artificial. Esta Ă©, de facto, a visĂŁo mais comum da sua obra. Mas Ă© uma perspectiva comparĂĄvel Ă  de quem diz nĂŁo ter encontrado nada de valor em Portugal por ter visto o seu territĂłrio desenhado num mapa-mundo.

Vivemos numa Ă©poca sem precedentes. A integração da inteligĂȘncia artificial na vida quotidiana Ă© jĂĄ uma realidade, e pela primeira vez confrontamo-nos com a possibilidade de descermos um degrau no pĂłdio dos entes mais inteligentes do planeta. Vivemos, de forma bastante literal, um novo GĂ©nesis. E tal como no GĂ©nesis bĂ­blico, tambĂ©m o nosso inclui um dilĂșvio global – nĂŁo de ĂĄgua, mas de informação, e potencialmente comparĂĄvel em nĂșmero de vĂ­timas.

Num dilĂșvio de informação nĂŁo Ă© o mundo externo que Ă© inundado, mas o interno. Aquilo que somos, o que desejamos ser, a auto-estima e a estima pelos outros, os nossos objectivos, medos, ambiçÔes; em suma, tudo o que em nĂłs constitui a nossa individualidade, Ă© todos os dias submergido e arrastado na torrente de informação pejada de escolhos que torna impossĂ­vel a quietude necessĂĄria a que estejamos sossegados em casa dentro de nĂłs prĂłprios. A consequĂȘncia mais imediata nĂŁo pode deixar de ser um esfumar do sentido do “eu” atĂ© agora considerado tĂŁo orgĂąnico quanto o nosso coração ou pulmĂ”es. Inevitavelmente, segue-se a depressĂŁo, dĂșvida existencial, vazio de sentido, etc., na sucessĂŁo de nadas que Macbeth reduz a um “amanhĂŁ, e amanhĂŁ, e amanhĂŁ,” pautada por intervalos publicitĂĄrios de cinco segundos e fotografias de desconhecidos com filtro de felicidade, em que a razĂŁo para existir que nos falha estĂĄ Ă  venda online a preços de desconto na forma de produtos e tratamentos anti-envelhecimento, experiĂȘncias de luxo e diversĂŁo, dietas e treinos infalĂ­veis – tudo para que nĂŁo percamos a consciĂȘncia de que vivermos melhor Ă© possĂ­vel deste que tenhamos outro aspecto, vivamos noutro sĂ­tio, estejamos com outras pessoas, e sejamos outra pessoa.

Uma outra consequĂȘncia deste desalojamento mental por força do arrasto centrĂ­fugo do remoinho de informação Ă© a procura sĂŽfrega por vozes sĂĄbias de quem saiba que direcção devemos tomar e esteja disposto a divulgĂĄ-la. Como sempre aconteceu, Ă© em momentos destes que as vozes populistas e autoritĂĄrias mais fazem eco. Quem estĂĄ livre de si mesmo porque nĂŁo se encontra em lado nenhum nĂŁo pode viver sem um mestre, e a voz que lhe for mais prĂłxima e falar mais alto vai ser aquela que ouvirĂĄ primeiro. Os ideais liberais fundam-se no valor da individualidade. Mas como pode qualquer partido liberal promovĂȘ-los entre quem a perdeu? Ou em quem escapar ao horror da solidĂŁo pela pacĂ­fica imersĂŁo no pensamento de grupo? Como promover o pluralismo, a tolerĂąncia e a justiça social entre quem vive na sua prĂłpria cabeça como imigrante?

A forma de travar o arrastĂŁo da torrente de informação Ă© parar e simplesmente olhar para o espelho atĂ© que nos reconheçamos novamente. NĂŁo o espelho das palavras de outros a serem levados pela enxurrada, nem da voz daqueles que oferecem paz em troca de obediĂȘncia, mas um espelho que nos mostre como podemos ser com um tratamento anti-envelhecimento interior, uma viagem a um local desconhecido interior, uma dieta de informação, e um programa de treino de reflexĂŁo.

Shakespeare Ă© esse espelho

O escritor e crĂ­tico literĂĄrio do sĂ©culo XIX, Samuel Johnson, considerou que a total originalidade de Shakespeare Ă© devida ao seu poder de “criação de distintos,” isto Ă©, de criar personagens que diferem completamente umas das outras e de qualquer e de qualquer outra personagem na literatura. Para Shakespeare, o enredo, as acçÔes, as ideias, a religiĂŁo, tudo fica em segundo lugar perante a exuberĂąncia de uma personalidade nova. Shakespeare era fascinado pela individualidade, de tal modo que Harold Bloom considera que foi, literalmente, o fundador do conceito moderno de “personalidade.” Em Shakespeare encontramos todo o espectro da emoção humana, do maior amor Ă  mais maligna inveja; todo o espectro da intelectualidade, do mais abjecto servo das suas paixĂ”es sem qualquer sentido crĂ­tico (e.g. Caliban em A Tempestade), ao maior gĂ©nio da interioridade de toda a literatura (i.e. Hamlet). Encontramos mulheres disfarçadas de homens que afirmam a sua feminilidade atravĂ©s do exercĂ­cio de caracterĂ­sticas tradicionalmente tidas como masculinas, de que as personagens masculinas em seu redor estĂŁo totalmente despojadas. Encontramos jovens apaixonados, velhos desiludidos, guerreiros desgraçados, herĂłis corrompidos, vilĂ”es redimidos, nobres camponeses e aristocratas desmiolados, de tal modo que herĂłi e vilĂŁo, homem e mulher, aristocrata e camponĂȘs, sĂŁo categorias que mudam a cada nova leitura. E no acto dessa leitura, somos homem, mulher, vilĂŁo, camponĂȘs, aristocrata, soldado, monstro e herĂłi, e a mesma personagem pode ser um e outro simultaneamente, dependendo de quem somos enquanto lemos, da nossa idade, e da vida que temos e tivemos. Li o Hamlet pela primeira vez aos 17 anos e nunca parei de o fazer desde entĂŁo. Hoje, a caminho dos 41, nĂŁo reconheço o Hamlet que li inicialmente – e, no entanto, esse Hamlet vive naquelas palavras que nĂŁo mudaram, e com ele aquele que eu fui aos 17 anos. Shakespeare Ă© assim tambĂ©m uma espĂ©cie de “cartĂŁo de memĂłria” da personalidade.

Ou seja, na exploração destas personagens, aquilo que exploramos somos nós próprios. Essa ferramenta para desbravar trilhos interiores que Shakespeare nos legou ensina-nos o que são a individualidade, o pluralismo, o mérito, a justiça, mas também a retórica populista, o engano, a traição, a corrupção, e os caminhos que levam a todas. Em suma, ensina-nos quem é o indivíduo que se esconde por detrås das nossas crenças e valores. E posso dizer que se sou liberal, devo muito desse percurso a Shakespeare.

Comecei a ler Shakespeare na Amadora, numa tradução bilingue do Hamlet que encontrei por mero acaso na antiga livraria do centro comercial BabilĂłnia. Pouco ou nada percebia do texto em InglĂȘs, mas emprenhei-me ao mĂĄximo na tentativa, lendo cada linha uma a uma em PortuguĂȘs e InglĂȘs, movido pelo desejo de saber por que motivo tanta gente falava deste autor. Nunca tinha andado de aviĂŁo e pouco tinha visto fora da minha cidade, pelo que esta era a minha forma de viajar. SĂł mais tarde aprendi que o prĂłprio Shakespeare viveu toda a sua vida nos limites de uma ĂĄrea muito pequena. Passou a maior parte do seu tempo na sua terra-natal de Stratford-upon-Avon, com ocasionais viagens de trabalho a Londres, e que se saiba, nada mais. Saiu da escola aos 15 anos, a sua famĂ­lia enfrentou sĂ©rias dificuldades financeiras quando ainda era novo, e era mais um homem do campo do que da cidade. Como sempre tem sido dito, viveu a mais pequena das vidas e no entanto viu mais longe sobre o que Ă© ser humano do que qualquer um antes ou depois dele.

Como membro do nĂșcleo da Amadora da Iniciativa Liberal, tal como em todas as outras ĂĄreas da minha vida, esta constatação nunca anda longe do meu pensamento. O mais importante dramaturgo de sempre nasceu numa cidade que era um misto de rural e urbana, baseada maioritariamente no comĂ©rcio, com mercadores de vĂĄrias nacionalidades sempre a entrar e a sair, e vĂĄrias feiras e mercados semanais e anuais que reuniam todos os habitantes num forte espĂ­rito de comunidade e identidade. Se Shakespeare visitasse a Amadora contemporĂąnea, talvez se sentisse mais em casa do que em qualquer outra parte do PaĂ­s. Se temos esse privilĂ©gio, se as nossas origens sĂŁo de tantas formas tĂŁo prĂłximas do autor que de forma mais vĂ­vida plasmou os ideais liberais em literatura, e que das suas humildes origens de onde pouco se afastou deixou atrĂĄs de si toda a concorrĂȘncia, nĂŁo hĂĄ desculpa para que nĂŁo acreditemos que um dilĂșvio liberal nĂŁo pode ter a sua origem entre o topo da Mina de ĂĄgua e o fundo de Alfragide.

E assim, de forma nĂŁo autocrĂĄtica mas liberal, termino com a afirmação peremptĂłria de que Shakespeare nĂŁo era Klingon, nem AlemĂŁo, nem sequer era InglĂȘs.

Shakespeare era PortuguĂȘs, nascido e criado na Amadora.

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