SFRAA e Junta: O problema da Perceção
- Agosto 27, 2025
- Bruno Nogueira
A SFRAA é uma instituição indispensável na Amadora: gere creches, jardim-de-infância, centro de dia, apoio domiciliário e atividade cultural e desportiva, com impacto direto em centenas de famílias. Em 2023 declarou 2.058.991,92 € de rendimentos, dos quais 1.341.378,36 € vêm de subsídios/doações (cerca de 65%do total). É dinheiro público em escala relevante, que justifica escrutínio redobrado.
É neste cenário que a ligação familiar direta entre o tesoureiro da SFRAA (Carlos Heitor) e a presidente da Junta de Freguesia da Falagueira-Venda Nova (Rafaela Heitor) levanta um problema de perceção que não pode ser varrido para debaixo do tapete. Não estou a insinuar ilegalidades. Estou a dizer que, quando o pai gere a tesouraria de uma associação fortemente financiada com dinheiros públicos e a filha lidera a entidade que pode autorizar apoios, o risco de conflito percebido é óbvio, ainda que ambos ajam com honestidade. Numa democracia madura, a aparência de imparcialidade é tão importante como a imparcialidade em si.
Porquê falar de “compliance” aqui
Em organizações que movimentam milhões, barreiras éticas e processuais servem precisamente para proteger a confiança pública. E há exemplos concretos, próximos e objetivos:
Administração Pública (processos administrativos). O Código do Procedimento Administrativo consagra impedimentos e suspeições (arts. 69.º a 76.º), prevendo abstenção quando existe parentesco ou interesse direto de quem decide relativamente ao interessado no procedimento. É a forma canónica de afastar o decisor e preservar a neutralidade.
Contratação Pública. O Código dos Contratos Públicos obriga as entidades públicas a prevenir, identificar e resolver conflitos de interesse (art. 1.º-A, n.º 3-4) e exige, por exemplo, declarações de inexistência de conflitos por quem gere contratos (modelo no Anexo XIII do CCP). São “travões” formais para que quem decide não esteja em situação de favorecimento, real ou percebido.
Cargos políticos e altos cargos públicos. A Lei n.º 52/2019 estabelece deveres declarativos, incompatibilidades e impedimentos para titulares de cargos políticos e altos cargos públicos — isto é, um quadro de integridade que existe precisamente porque a confiança no processo é um bem público.
Setor empresarial e cotadas. Em empresas de referência, transações com partes relacionadas (familiares, entidades controladas, etc.) têm regras apertadas: divulgação obrigatória (IAS 24), parecer de comité de auditoria e políticas internas específicas (ex.: política de partes relacionadas da EDP, que ancora em IAS 24, Regulamento CMVM e ISO 37001). A lógica é a mesma: transparência e “muros” internos para que ninguém julgue o próprio caso.
Referencial internacional. As Linhas de Orientação da OCDE para gestão de conflitos de interesse insistem na identificação atempada, documentação e gestão transparente dos conflitos, não para punir pessoas, mas para proteger a integridade das decisões públicas.
Estes exemplos mostram que o padrão esperado quando há dinheiro e poder de decisão é ter regras claras de abstenção, declarações formais e cadeias de decisão blindadas. É isso que evita que “pareça” que alguém pode puxar dos galões familiares.
O que está em causa, na Amadora
Volto aos números: 1,34 M€ em subsídios/doações num total de 2,06 M€ de rendimentos anuais. É muito dinheiro público a sustentar respostas sociais que todos valorizamos. Logo, qualquer cruzamento familiar entre quem pede (dirigente/tesoureiro) e quem pode aprovar (presidente da Junta) tem de ser analisado sob a lente da imparcialidade, nem que seja para dizer, preto no branco, que houve abstenção formal sempre que o dossiê envolveu a SFRAA. É assim que se protege a instituição e a confiança dos munícipes.
Não basta “estar tudo legal”. O padrão é mais alto. Nos códigos e boas práticas que citei, a gestão do risco de perceção é parte da integridade pública. Se não houver registos públicos de abstenções, declarações de inexistência de conflito, ou outro mecanismo visível, fica a dúvida, e a dúvida corrói.
Não é um ataque à SFRAA, é um apelo à maturidade institucional
A SFRAA presta serviços vitais e deve continuar a prestá-los. Justamente por isso, precisa de estar acima de qualquer suspeita. O mesmo vale para a Junta: quanto mais relevante o orçamento envolvido, mais alto tem de ser o patamar de transparência e “compliance”. É esta maturidade institucional que distingue as democracias que confiam nas suas decisões das que desconfiam por sistema.
Em resumo: quando o pai gere a tesouraria de uma associação fortemente financiada por fundos públicos e a filha é a decisora política local com poder para apoiar essa associação, o mínimo profissional, que já pedimos na Administração Pública, na contratação, nas empresas cotadas e nas guidelines internacionais, é deixar um rasto formal de imparcialidade. Isso protege todas as partes: a associação, a Junta e, sobretudo, os cidadãos que pagam a conta.
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